Positivamente tocado pela escolha que Cândido Martins fez do texto de Camilo Vinte Horas de Liteira para a sua segunda “Noite de Insónia”, e apesar de nela não ter podido participar, desejo deixar um breve apontamento acerca da razão do apreço que nutro por esta obra.
Antes de mais, para mim, "Vinte Horas de Liteira" representa a condição programática da estética da criação de Camilo, a qual vem sendo formulada desde o seu primeiro romance, "Anátema". É através do seu alter-ego António Joaquim (personagem que aparece em romances como o "Sangue" e "Doze Casamentos Felizes") que o auto-narrador expõe as grandes questões estéticas, tais como a condição do ser-artista, o papel dos editores perante o escritor, o emergir do tema perante o escritor, as relações do criador com o leitor, o papel da literatura perante a problemática do fingimento e perante os valores morais, o papel da imaginação e da memória no acto de geração da obra de arte.
Entremeadas nestas temáticas, surge na obra também uma certa fenomenologia do amor moldando os vários tipos humanos, espraiados numa multiplicidade de histórias às quais acedemos através da já referida figura de António Joaquim.
Neste contexto ganha fôlego a reflexão que Camilo empresta à poesia, ao papel dos folhetinistas (os quais, depois, dão em políticos), às paixões, aos costumes, ou a relação entre as personagens.
Outros temas e outras preciosidades subsistem nesta obra de Camilo Castelo-Branco. Porém, esta breve ponta aqui levantada já mostra, na nossa perspectiva, a atenção que ela merece.
Amadeu Gonçalves, Antigo Aluno da Faculdade de Filosofia
Comentário do Prof. Cândido Martins:
Obrigado pelo pertinente e interessado comentário. Estes tópicos que menciona foram algumas das ideias partilhadas pelos presentes na última sessão da Comunidade de Leitores "Noites de Insónia", na Casa de Camilo. Com efeito, "Vinte Horas de Liteira" singulariza-se por ser uma história cuja organização é determinada por múltiplas reflexões metanarrativas, de variada temática. Através do estratagema do diálogo constante entre o narrador-autor e a personagem de António Joaquim, Camilo conta um sedutor conjunto de pequenas histórias, ao mesmo tempo que apresenta uma espécie de poética da sua ficção, embora de forma dispersa, mas não menos interessante. Uma das leituras possíveis é que assistimos ao diálogo crítico e auto-crítico de Camilo com ele próprio (muitas vezes em cativante regime de ironia e de auto-paródia), através desta interposta personagem. Deste modo, António Joaquim pode ser visto como um espelho diante do qual Camilo desnuda os seus processos ficcionais e a sua concepção de arte literária e do papel do artista-escritor. Em suma, o leitor vai assistindo à reflexão constante do narrador-autor em torno da construção da própria narrativa, por um lado; e por outro, ao pensamento sobre o papel da literatura e o lugar do escritor, por outro. Tudo isto faz de "Vinte Horas de Liteira" uma obra central na produção literária de Camilo Castelo Branco, isto é, uma escrita que se pensa a si própria, num constante exercício de auto-crítica estética.
Cândido Oliveira Martins
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