O Centro Cultural Vila Flor, desenvolvimento e sustentação cultural.
20 anos de gestação
O convite para falar do Centro Cultural Vila Flor como “case study” é uma enorme responsabilidade e obriga-me a recuar no tempo, considerando que aquilo que é hoje o Centro Cultural Vila Flor se alicerçou num trabalho persistente de cerca de 20 anos.
A partir dos anos 90 a cultura, no sentido de prática cultural no campo das artes performativas, assumiu em Guimarães um papel que até então era praticamente invisível.
Paulatinamente foram acontecendo actividades diversas, promovidas pela Câmara Municipal de Guimarães e por diversas associações do concelho. É no final da década de 80, princípio da década de 90 que têm início, de forma sustentada, actividades que perduram até hoje (Festivais Gil Vicente-1987; Encontros da Primavera-1990; Guimarães Jazz-1992). Estas iniciativas âncora permitiram o desenvolvimento de um conjunto de actividades de natureza artística, funcionando como suporte de credibilidade para uma programação tão regular e diversificada quanto possível.
Os constrangimentos a esta actividade eram enormes mas a dificuldade transformou-se em oportunidade. A inexistência de um espaço de programação, com as condições técnicas mínimas, fez com que a cidade se transformasse no espaço de programação (O Paço dos Duques de Bragança, o Castelo de Guimarães, as praças do Centro Histórico, as inúmeras e belíssimas igrejas, os cantos de cada recanto, tornaram-se espaços cénicos). Esta realidade fez com que o ritmo de programação fosse aumentando; a realização no espaço público aumentou a participação dos públicos; a vontade de fazer venceu a dificuldade. Os espaços foram sendo adaptados na medida do possível, os meios técnicos foram sendo adquiridos, a equipa de trabalho foi-se apaixonando pelo projecto, o poder político foi acreditando cada vez mais na generosidade do mesmo, o público foi exigindo mais e a bola de neve foi crescendo.
Com a recuperação do Centro Histórico, que levou a UNESCO a classificar Guimarães como Património Cultural da Humanidade, em 2001, tornou-se necessário e premente potenciar a vivência do centro histórico, evitando a sua utilização para actividades marginais. Assim nasceu o Verão Vale a Pena em Guimarães que consistia num ritmo frenético de programação e que rapidamente conquistou e alargou públicos. Conquistou desde logo o público residente que assistia “de camarote” aos espectáculos (em determinada altura do ano eram diários), conquistou o público que passou a frequentar o espaço numa óptica de ver o que se estava a passar e conquistou o público que estava ansioso por fruir música, teatro, dança, cinema.
Como tudo na vida, este ciclo de frenesim teve que inverter tendências, o espaço estava definitivamente conquistado na fruição cívica e sem riscos de retorno, os “donos dos camarotes” começavam a acusar cansaço.
Fruto de uma parceria da Câmara Municipal de Guimarães com a Universidade do Minho passou a existir, desde 1994, um espaço com condições razoáveis para a realização de programação artística. Finalmente existia em Guimarães um espaço para que permitia regularidade e coerência sem condicionalismos meteorológicos. Assim nasceu o Festival de Inverno (Janeiro a Março), primeira prática programática consistente e regular que permitiu iniciar hábitos de frequência sem interrupções temporais e saindo da trilogia Maio (Encontros da Primavera), Junho (Festivais Gil Vicente) e Novembro (Guimarães Jazz), isto para além da continuidade da programação em espaços não convencionais.
Passou a existir uma prática miscelânica na programação. Passou a ser possível acolher projectos que até então não passavam do sonho. Passou a ser possível fidelizar públicos que passaram a deslocar-se aos espaços de apresentação, passou a ser possível cobrar entradas nos espectáculos. Passou a ser possível exigir mais de nós próprios.
Tudo isto poderia ter acontecido de outra forma, poderiam ter sido feitas outras opções, mas a opção política foi a de definir a cultura como vector estratégico de desenvolvimento, crucial para o tão importante reforço da postura qualitativa e competitiva dos cidadãos e da cidade.
A política cultural foi estruturalmente concebida, de forma a reforçar e manter uma oferta qualificada e que ao mesmo tempo fosse capaz de atrair, formar e satisfazer diferentes segmentos da procura.
A autarquia teve como objectivo assegurar a preservação do património arquitectónico, cultural e histórico, infra-estruturas e equipamentos, assim como apoiar e incentivar as instituições e colectividades produtoras e promotoras de actividades na área da cultura. Desta forma pretendeu não só salvaguardar e divulgar as diferentes práticas culturais tradicionais, mas também dinamizar e potenciar o aparecimento de actividades e eventos com carácter inovador.
No que concerne às práticas culturais da população o grande objectivo foi a formação e a atracção de diferentes segmentos de público, onde se incluía, por um lado, a população residente, destacando-se destes os mais jovens e, por outro, os turistas e visitantes.
Atendendo à política traçada, os principais eixos estratégicos de intervenção tiveram por finalidade dar respostas aos desafios contemporâneos e às aspirações dos cidadãos, contribuindo para o desenvolvimento, valorização, afirmação e promoção da cidade.
Diversificar a oferta cultural de acordo com as exigências de um público com novos padrões de consumo cultural, de forma a qualificar Guimarães como espaço de cultura e lazer de qualidade foi um objectivo claro da política cultural da cidade. A promoção da imagem do concelho tem passado por isso pela aposta forte em eventos culturais de vanguarda e de qualidade, de que o Guimarães Jazz é o exemplo mais consolidado no calendário cultural de Guimarães.
A formação foi, desde muito cedo, uma presença assídua no panorama da programação cultural. Os Cursos Internacionais de Música, a Semana da Dança, a ODIT – Oficina Dramatúrgica de Interpretação Teatral que mais tarde deu origem ao Teatro Oficina, os ateliers, os colóquios, os debates, foram instituindo uma forma diferente de participar, foram fazendo com que o conceito de posse, de apropriação, estivesse cada vez mais presente.
O projecto cultural de Guimarães não era de ninguém, era de muitos.
A ODIT quando foi criada teve uma aceitação que ultrapassou em muito qualquer expectativa optimista (foram mais de 600 inscrições para fazer, no sentido de participar, teatro; inscrições de várias faixas etárias, sociais, económicas, culturais).
A esta enorme procura de formação descomprometida, de formação pelo prazer de experimentar, pelo prazer de conhecer, foi feita a opção mais difícil. Aceitar todas as inscrições, promover a experiência e ganhar tempo para repensar o projecto.
Aquilo que seria um projecto de teatro transformou-se num projecto que respondia aos desafios propostos, fez-se de tudo: teatro, dança, movimento, fotografia, cenografia, figurinos, desenho de som, desenho de luz, etc., etc.,etc.
Todas estas dinâmicas levavam, de forma crescente, à constatação clara da inexistência de espaços para resposta a tudo. A Oficina foi crescendo, foi conquistando espaços no Palácio Vila Flor, de sala em sala ficou com praticamente todo o espaço, foi adaptando, inventando, recriando, dando novas funcionalidades, novas utilizações.
Mas a dinâmica continuava sem ser correspondida com condições físicas. A Oficina adquiriu um armazém com cerca de 700m2 e, sem capacidade para realizar de imediato as obras de beneficiação, utilizou-o assim mesmo, inventando soluções. Só em 2004 as obras ficaram concluídas e o espaço passou a funcionar como local de residência do Teatro Oficina e como mais um local de apresentação de espectáculos.
Nesta altura já se vislumbrava no horizonte o sonho de muitos anos – a construção do Centro Cultural Vila Flor – após ousada decisão do Presidente da Câmara que reagiu ao rasgar de contrato de financiamento, por parte do estado, com a decisão de avançar sozinho para um projecto de dimensão regional que 18 meses e 15 milhões de euros depois foi inaugurado ( a 17 de Setembro de 2005).
Entretanto, em finais de 2003, a Câmara Municipal de Guimarães assina um protocolo de colaboração com a Oficina transferindo para esta a responsabilidade de programar os principais eventos culturais que até então assumia por si própria em parceria com diversas instituições mantendo, no entanto, os parceiros originais de cada projecto.
Estes quase dois anos em que a Oficina assumiu a responsabilidade de programar, de acordo com a estratégia definida e com o objectivo claro de iniciar um trabalho que pudesse ser capitalizado por quem viesse a gerir o Centro Cultural Vila Flor.
Estes dois anos foram determinantes para que a Câmara Municipal de Guimarães decidisse que seria a própria Oficina a capitalizar o trabalho desenvolvido e entregou-lhe o desafio de gerir o CCVF.
O capital adquirido foi determinante para a Oficina ter a capacidade de aceitar o desafio, reestruturando-se e assumindo a abertura e funcionamento do espaço sem constrangimentos de maior e com eficácia, passe a imodéstia.
O Centro Cultural Vila Flor passa a ser uma realidade pela força de um trabalho de muitos durante muitos anos, resulta de uma inevitabilidade latente, de uma asfixia existente e de uma falta de soluções para que o projecto pudesse crescer. A vontade, a exigência, a necessidade de crescer pressionavam demasiado a camisa de forças que aprisionava o projecto.
O Ministério da Cultura apoiava financeiramente o primeiro ano de funcionamento, ou os dois primeiros, dos espaços que tivessem sido comparticipados pelo estado para a construção.
Como o estado tinha rasgado o contrato de financiamento para a construção do CCVF também não pode aceder ao financiamento para o arranque do seu funcionamento.
Felizmente a visão de quem decidiu construir o espaço é suficientemente ampla para perceber que um espaço com as características do CCVF e com a missão que a CMG lhe atribui, apenas pode funcionar com um financiamento claro e significativo. Foi assim que aconteceu e acontece.
Com quase quatro anos de funcionamento ainda é prematuro fazer balanços que extravasem o estafado esgrimir de números, até porque, sendo importantes, não podem qualificar ou desqualificar, só por si, o alcance do trabalho desenvolvido.
Como quase nada acontece por acaso, Guimarães terá um enorme desafio, que estou convicto transformará em oportunidade. Ser Capital Europeia da Cultura em 2012. Quem de direito na altura certa dirá o que vai ser a Capital Europeia da Cultura em 2012, quem de direito e na altura certa, ou seja todos nós, fará a avaliação do que foi.
Tenho dado particular ênfase à programação cultural, às artes performativas, pela proximidade que tive e tenho neste âmbito, mas não é possível deixar de referir outras iniciativas de grande importância para a consolidação do projecto cultural de Guimarães. A Biblioteca Municipal Raul Brandão, o Arquivo Alfredo Pimenta, o Museu de Alberto Sampaio, a Sociedade Martins Sarmento, as diversas Associações Culturais, todos tiveram um importante papel na construção daquilo que é hoje um projecto cultural abrangente e assumido por muitos como crucial para o desenvolvimento próximo e longínquo.
Deixando a história de lado, passaria a uma reflexão sobre a necessária sustentação de um projecto cultural.
Falar sobre sustentação cultural abre um conjunto de caminhos imensamente sinuosos e plenos de encruzilhadas.
Divagar sobre a cultura é um exercício que procurarei fazer, sem pretensiosismo nem certezas inabaláveis, mas com convicções que a realidade quotidiana se encarrega de questionar repetidamente.
Desde logo, surge o questionamento basilar acerca do que é a cultura; acerca do que se fala quando se fala de cultura; acerca da comunicação que se estabelece entre emissor e receptor quando a palavra soa. Cultura significa exactamente o quê? Aquilo que está imanente nos conceitos de quem diz? Ou aquilo que significa em função dos códigos de quem ouve?
No meio da encruzilhada avanço em várias direcções e volto sempre atrás em busca do caminho inexistente da totalidade.
Na perspectiva humanística da definição de cultura, e na utopia da universalidade da erudição globalizada, a cultura aparece como uma característica inerente a cada indivíduo e perfeitamente diferenciada de outro. Isto porque a cultura, neste sentido, resulta de um vasto conjunto de conhecimentos assimilados, independentemente da sua natureza temática, permitindo afirmar que dois indivíduos de elevada erudição pouco têm em comum no que concerne à sua cultura.
Nesta medida, apesar de reducionista, a cultura não poderá nunca ser uma característica intrínseca de um povo, de uma região ou de uma vivência. No limite haveria tantas culturas como indivíduos e a palavra cultura, enquanto elemento de significação objectiva deixaria de ter sentido.
Cada vez mais aquilo que diferencia e que assume um registo de marca indelével de uma cultura terá tendência para se esbater em consequência da normalização a que todos são conduzidos na busca de uma aceitação individual e colectiva; na busca dos modelos que as culturas mais fortes impõem como referenciais e indiscutíveis e funcionando como castradores da manutenção das culturas e castradores do aparecimento de novas culturas. Em suma poderá correr-se o risco da existência globalizada de uma aculturação, imposta pelas culturas predominantes que apagam as características intrínsecas doutras culturas que consideram fora dos cânones que estabeleceram para si próprios.
Posto isto, questiono-me acerca do que será feito da cultura como conjunto de características que permitam agrupar um conjunto alargado de indivíduos em função do que de comum possuem como prática vivencial em resultado dos hábitos e práticas adquiridas ao longo dos tempos.
Porventura passaremos a ter uma cultura universalista e sem características suficientemente fortes e marcantes para que se possam diferenciar.
Ultrapassado este exercício especulativo, e considerando que a sustentação cultural de um projecto cultural se mede pela sua capacidade em contribuir para o crescimento do indivíduo nas várias dimensões da sua vivência, urge falar dos princípios que darão sustentabilidade a um qualquer projecto cultural.
A primeira abordagem, sem conseguir abandonar por completo a abordagem especulativa, situa-se ao nível da utopia no que concerne ao âmbito dos fruidores das propostas que uma programação artística disponibiliza. Citando de cor a directora do Teatro Municipal de Bragança, Helena Genésio, quando questionada sobre o pretenso elitismo da sua programação, diria que se elitismo significa qualidade, desejo elitismo para todos.
Perseguindo o desiderato desta contradição, procura-se a sustentação cultural através do objectivo traçado para prossecução de uma missão.
No Centro Cultural Vila Flor, local onde desempenho funções, procuramos a sustentação cultural pela presença da convicção do trabalho desenvolvido no campo da programação e da criação artística. Procurar sustentabilidade significa disponibilizar propostas artísticas de forma regular e com abrangência de área e género. Sustentabilidade significa que o programador está munido de convicções e de conhecimentos para executar a tarefa em apreço, significa que o programador é um mediador entre o objecto artístico e o público, significa que o programador está ao serviço da mediação e não se serve dela para outros fins que não o de tentar utilizar os recursos disponíveis para aproximar e colocar em diálogo o sujeito (público) e o objecto. A adequação da programação, em função do conhecimento e interpretação do território, potencia a sustentação do projecto, consolidando relações e favorecendo a apropriação. Sustentação programática é dar primazia ao objecto artístico, em detrimento de lógicas meramente economicistas ou numéricas. Sustentação é propiciar uma proximidade relacional entre o público e a arte.
Sustentação é formação; é criação, é diálogo, é divergência; é convergência; é ter opinião; é fazer opinião; é ouvir; é não hesitar; é avançar humildemente; é recuar orgulhosamente; é gerir tensões; é ousar.
Sustentação é elevação.
Sustentação é tudo isto e muito mais, desde que utilizado como veículo e como forma de veicular a aproximação do público às artes e à cultura no seu conceito mais humanista – ao serviço do homem.
Sustentação é, ainda, dar condições para que todos possam ter acesso a um exercício de cidadania pleno e é neste pressuposto de exercício de cidadania que é fundamental o papel desempenhado pelos serviços educativos como forma de combater a castração criativa que o modelo de ensino provoca nos jovens.
A formatação do ensino nas escolas coarcta a notável capacidade criativa das crianças que conseguem, simultaneamente, viver num mundo real sem deixarem de ter a sua existência vivencial num mundo imaginário, sem formatações prévias e com uma enorme liberdade de pensamento criativo, porque não sujeito às normalizações que os adultos ainda não conseguiram, vitoriosamente, introduzir.
A necessidade da comparação com os outros, a necessidade da perfeição, a definição de um padrão apresentado como normal, leva aquilo que a sociologia define como institucionalização resultante da habituação, resultante da socialização primária.
Assim, desde muito cedo, a escola e as famílias procuram institucionalizar as crianças, certos que essa é a melhor forma de garantir o seu desenvolvimento mais adequado e esquecendo-se que, dessa forma, estão a restringir o crescimento de cada um ao seu ritmo e de acordo com liberdade criativa que existe, em potência, nas crianças.
Os serviços educativos devem perseguir o objectivo de institucionalizar o espaço para a criatividade, o espaço para o crescimento diferenciado.
As artes são um contributo fundamental para tal.
Quase para terminar cito Jean Piaget:
“ O essencial é que, para que uma criança entenda, deve construir ela mesma, deve reinventar. Cada vez que ensinamos algo a uma criança estamos a impedir que ela descubra por si mesma. Por outro lado, aquilo que permitimos que descubra por si mesma, permanecerá com ela”(Piaget, 1998).
Cito também Carlos Drummond de Andrade, que num artigo publicado no Jornal do Brasil em 1974, já abordava a questão da criatividade como elemento essencial para o desenvolvimento equilibrado:
A Educação do ser poético
“Por que motivo as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo? Será a poesia um estado de infância relacionada com a necessidade de jogo, a ausência de conhecimento livresco, a despreocupação com os mandamentos práticos de viver – estado de pureza da mente, em suma?
Acho que é um pouco de tudo isso, se ela encontra expressão cândida na meninice, pode expandir-se pelo tempo afora, conciliada com a experiência, o senso crítico, a consciência estética dos que compõem ou absorvem poesia.
Mas, se o adulto, na maioria dos casos, perde essa comunhão com a poesia, não estará na escola, mais do que em qualquer outra instituição social, o elemento corrosivo do instinto poético da infância, que vai fenecendo, à proporção que o estudo sistemático se desenvolve, ate desaparecer no homem feito e preparado supostamente para a vida?
Receio que sim. A escola enche o menino de matemática, de geografia, de linguagem, sem, via de regra, fazê-lo através da poesia da matemática, da geografia, da linguagem. A escola não repara em seu ser poético, não o atende em sua capacidade de viver poeticamente o conhecimento e o mundo.
Sei que se consome poesia nas salas de aula, que se decoram versos e se estimulam pequenas declamadoras, mas será isso cultivar o núcleo poético da pessoa humana?
Oh, afastem, por favor, a suspeita de que estou acalentando a intenção criminosa de formar milhões de poetinhas nos bancos da escola maternal e do curso primário. Não pretendo nada disto, e acho mesmo que o uso da escrita poética na idade adulta costuma degenerar em abuso que nada tem a ver com a poesia. Fazem-se demasiados versos vazios daquela centelha que distingue uma linha de poesia, de uma linha de prosa, ambas preenchidas com palavras da mesma língua, da mesma época, do mesmo grupo cultural, mas tão diferentes.
Se há inflação de poetas significantes, faltam amadores de poesia – e amar a poesia é forma de praticá-la, recriando-a. O que eu pediria à escola, se não me faltassem luzes pedagógicas, era considerar a poesia como primeira visão directa das coisas e, depois, como veículo de informação prática e teórica, preservando em cada aluno o fundo mágico, lúdico, intuitivo e criativo, que se identifica basicamente com a sensibilidade poética.
Não seria talvez despropositado cuidar de uma extensão poética das escolinhas de arte, esta ideia maravilhosa que Augusto Rodrigues tirou de sua formação humana de artista para a realidade brasileira. Longe de ser uma fábrica alarmante de versejadores infantis, essa extensão, curso ou actividade autónoma, ou que nome lhe coubesse, daria à criança condições de expressar sua maneira de ver e curtir a relação poética entre o ser e as coisas. Projecto de educação para a poesia (fala-se hoje em educação artística no ensino médio, quando o mais razoável seria dizer educação pela arte). A vocação poética teria aí uma largada franca, as experiências criativas gozariam de clima favorável sem que tal importasse na obrigação de alcançar resultados concretos mensuráveis em nível escolar. Sei de casos em que um engenheiro, por exemplo, aos 30, 40 anos, descobre a existência da poesia... Não poderia tê-la descoberto mais cedo, encontrando-a em si mesmo, quando ela se manifestava em brinquedos, improvisações aparentemente absurdas, rabiscos, achados verbais, exclamações, gestos gratuitos?
Alguma coisa que se bolasse nesse sentido, no campo da Educação, valeria como correctivo prévio da aridez com que se costuma transcrever os destinos profissionais, murados na especialização, na ignorância do prazer estético, na tristeza de encarar a vida como dever pontilhado de tédio. E a arte, como a educação e tudo o mais, que fim mais alto pode ter em mira senão este, de contribuir para a educação do ser humano à vida, o que, numa palavra, se chama felicidade?”(Andrade, 1974)
Esta questão mantém hoje uma grande actualidade, atendendo ao facto da escola continuar a não responder a uma necessidade primordial das crianças e que os Teatros, Centros Culturais, Fundações e outras estruturas ligadas às artes estão, felizmente, cada vez mais a assegurar.
Importa referir que toda a sustentação, de qualquer projecto cultural, apenas pode acontecer se cimentada numa visão política e estratégica de quem tem o poder decisório. Só um poder sustentadamente estratégico e convictamente esclarecido consegue dar condições para que se cumpra o serviço público, sem interferências casuísticas a propósito deste ou daquele interesse, com uma cumplicidade partilhada no que concerne a duas questões essenciais: o conhecimento do ponto de partida e a partilha do objectivo de chegada.
Muito Obrigado.
José Bastos / Figueira da Foz, 1 de Junho de 2009
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