quinta-feira, 25 de março de 2010

"CHAGA DO LADO" pelo Professor Luís da Silva Pereira*


Sempre nos pareceu estranho que os artistas que representaram Cristo crucificado lhe tenham colocado, quase sem excepção, a chaga no lado direito do peito. Deviam supor, logicamente, que o soldado romano que trespassou Cristo, querendo certificar-se de que estava morto, não tivesse escolhido o lado direito para lhe dar o golpe fatal, mas o esquerdo. É aí, com efeito, que sentimos palpitar o coração, é aí que sempre o imaginamos. Os artistas seriam, pois, levados a pensar que o centurião, por mais desatento ou ignorante que fosse da anatomia humana, deveria ter trespassado Cristo pelo lado esquerdo, se lhe queria atingir o coração.
Poderíamos pensar que se fundamentaram nos Evangelhos. Contudo, desse pormenor não nos ficou nenhuma narrativa, nem no Evangelho em grego de S. João, o único que relata o episódio, nem na Vulgata, em latim. Também não aparece, quanto pudemos averiguar, nos relatos apócrifos que tanto apreciam minúcias realistas e pitorescas. S. João apenas diz que um dos soldados, vendo Cristo já morto, “perfurou-Lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue e água” (Cap. XIX, 34). O termo grego que ele utiliza é πλευράν, que significa simplesmente lado, sem especificar se se trata do direito ou do esquerdo. A Vulgata latina traduz por latus, igualmente sem qualquer especificação.
Não poderá vir daqui, portanto, o hábito de representar Cristo ferido do lado direito, iconografia que terá começado nas iluminuras do Evangelho Siríaco, datado do ano 586. Aí se pode ver, de facto, Cristo na cruz a ser trespassado, no lado direito, por Longuinhos, nome que provém dos evangelhos apócrifos, e não dos canónicos.
A predilecção dos artistas pelo lado direito poderia explicar-se por razões simbólicas. É ele o lado da salvação. É do lado direito que os artistas colocam o Bom Ladrão, embora os Evangelhos não digam de que lado ele estava; é do lado direito que colocam Nossa Senhora; é para o lado direito que inclinam a cabeça de Cristo quando morre; é para o lado direito que o fazem descair quando é descido da cruz; é para esse lado que Cristo convoca os que se salvam, no dia do Juízo Final; é ao lado direito do Pai que Cristo está sentado na sua glória; é ao lado direito de Cristo que Nossa Senhora é pintada depois de subir aos Céus. Simbolicamente, parece, pois muito mais conveniente pintar, desenhar ou esculpir, a chaga do lado direito porque o sangue e a água que dela saíram constituem sinais da salvação dos homens.
Até do ponto de vista estético, seria também melhor colocar a chaga do lado direito. Se Cristo inclinou para lá o corpo, ao morrer, então seria muito mais fácil pintá-la. Bastava um simples traço vermelho. Se a colocassem do lado esquerdo, a inclinação do corpo para a direita faria com que a ferida ficasse mais aberta, tornando-se também mais difícil de pintar.
Lembrámo-nos de verificar, por simples curiosidade, de que lado estava a chaga na síndone de Turim. Ficámos completamente estupefactos. A síndone de Turim revela que a chaga se encontra precisamente no lado direito! Os estudiosos determinaram mesmo que a lança penetrou entre a quinta e a sexta costelas. Mais ainda: para sair sangue e água (que é a linfa), como relata o Evangelho, a ferida teria que ser feita pelo lado direito, poi só assim atingiria a parte do coração que, nos cadáveres, fica cheia de sangue. Não se pode daqui concluir, de modo nenhum, que a fonte de inspiração dos artistas tenha sido o lençol no qual, segundo se crê, Cristo morto esteve envolvido. Bastaria uma só razão: apenas com a descoberta da fotografia foi possível, através do negativo fotográfico, olhar a “verdadeira realidade” que mostra a chaga do lado direito. No lençol, ela está no lado esquerdo porque a imagem do lençol é uma imagem invertida. Se os pintores se tivessem inspirado nela, teriam pintado a chaga no lado esquerdo, tal como a veriam no lençol. Mais ainda: só a partir dos inícios do séc. XIV é que se generaliza a pintura de Cristo na cruz com um pé em cima do outro (normalmente o direito sobre o esquerdo – Pietro Perugino coloca o esquerdo sobre o direito). Antes representavam-se geralmente separados. Ora a síndone mostra que os pés estiveram pregados um sobre o outro, mas, ao contrário da representação habitual, o pé esquerdo é que esteve sobre o direito. Outro pormenor ainda: salvo raríssimas excepções, os artistas colocam os pregos na palma das mãos. A síndone revela que eles foram cravados nos pulsos. A síndone de Turim não pode, pois, pelas razões apresentadas, e várias outras que não é oportuno aqui referir, ter sido a fonte iconográfica da crucifixão, apesar da localização da chaga do lado.
Recentemente, encontrámos uma explicação que nos parece muito aceitável. Os soldados romanos treinavam-se a espetar a lança no peito dos inimigos pelo lado direito, uma vez que o lado esquerdo se encontrava protegido pelo escudo.
Será, pois, de admitir que houve uma tradição não escrita que identificava o lado direito como o lado em que o soldado romano cravou a lança. Dizemos “não escrita” porque só no século XII, num sermão de São Bernardo sobre a Paixão de Cristo, é que aparece, pela primeira vez, uma referência ao lado direito.

Luís Silva Pereira lecciona no Curso de EACs as Unidades Curriculares de
História da Arte Medieval, Iconografia e Arte Sacra

1 comentário:

Francisco Pintado disse...

Depois de ler com alguma atenção a explicação dada, ela faz realmente sentido. No entanto, julgo que anatomicamente o coração está mais situado para a direita do que à esquerda. É também plausível e fará sentido, que além do facto do escudo ser usado no lado esquerdo pelos soldados, estes tivessem conhecimentos rudimentares de anatomia e soubessem os pontos onde inflingir golpes mortais, pois nestes aspectos o homem sempre foi um especialista.
Francisco Pintado