Aqui se apresentam os sentidos primordiais de sedução e morte que às sereias se atribuíam. Curiosamente, Homero não descreve o seu aspecto. Gaio Plínio Secundus, porém, no Naturalis Historia (Livro 10, cap.49), cataloga-as entre os pássaros fabulosos. Por sua vez, Apolónio de Rodes, no livro IV de A Argonáutica, refere – e é a primeira vez que se lhes traça uma das várias genealogias - que eram filhas de Terpsícore e de Aqueloo, e descreve-as como “meio humanas e meio aves na forma”.
A palavra “sereia” poderá ter chegado ao Ocidente, não apenas através dos clássicos, mas também através da Bíblia. Com efeito, na tradução dos 70 feita por S. Jerónimo para latim, conhecida por Vulgata, no Livro de Isaías (XIII, 21-22), traduz-se o hebraico tannim por sirena. Pode ter sido ainda por outra via que o Ocidente teve conhecimento da palavra “sereia” e do seu conteúdo conceptual: através do célebre Fisiólogo, provavelmente do séc. II d.C., escrito em grego, livro no qual se procura dar o sentido alegórico dos animais referenciados na Bíblia. O Fisiólogo foi traduzido do grego para latim talvez no séc. V, e teve enormíssima difusão, influenciando profundamente os bestiários medievais e a iconografia por eles suscitada.
Por finais do séc. VII d. C., ou inícios do VIII, aparece uma nova representação: metade mulheres, até ao umbigo, e cauda de peixe, daí para baixo. Onde se operou essa transformação? Quem a fez?
Segundo Edmond Faral , o aparecimento de um novo tipo de sereia dá-se num livro chamado Liber Monstrorum de diversis generibus (Livro dos Monstros de Diversos Géneros). É nele que, pela primeira vez, se descrevem as sereias, até ao umbigo, com um corpo de rapariga, inteiramente parecidas com a espécie humana, tendo, no entanto, caudas escamosas, sempre escondidas dentro da água.
Esse livro é proveniente da Irlanda ou, pelo menos, de um país anglo-saxónico. O nome do autor é-nos fornecido por Thomas de Cantimpré, que morreu por volta de 1270. Refere que foi um tal Audelinus, filósofo que escreveu pouco, mas de grande qualidade, o autor do Liber Monstrorum.
Audelinus é a forma latina do nome anglo-saxónico Aldhem. Este Aldhem foi abade de Malmesbury e depois bispo de Sherbone (639-707.
Aparecem ainda outros tipos de sereias na Idade Média. No segundo quartel do século XII, surgem que combinam a mulher-ave com a mulher-peixe. É deste modo que são descritas no Aviário de Hugo de Fouillois, por exemplo. No Fisiólogo Armenio são apresentadas, do umbigo para baixo, com aspecto de pássaros, de asno ou de touro. No Bestiaris I, encontra-se um tipo de sereia metade mulher e metade cavalo. Em vez de cantar toca suavemente trompa com a qual adormece os homens para depois os matar.
O simbolismo da sereia é muito variado, mas sempre fortemente negativo. Salientamos os seguintes valores simbólicos:
1. Mulher sedutora, perigosa e mortífera, horrivelmente feia. Adormece o homem com o seu canto para depois matá-lo. É a tradição clássica.
2. Mulher prostituta, na tradição interpretativa de Isidoro de Sevilha.
3. Mulher demónio. Encontra-se no Roman de Brut, de Wace, 1155.
4. Mulher-louca ou insensata, que seduz o homem com a suavidade das suas palavras, mas depois os conduz à pobreza e à morte. Por outro lado, as asas da sereia significam que o amor da mulher vai e vem, quer dizer, é um amor inconstante (Pedro, o Picardo, no seu Bestiário). Esta visão da mulher como ser inconstante e volúvel vem da Antiguidade Clássica: varium et mutabile sempre femina.
5. Já Isidoro de Sevilha interpretava o facto de as sereias apresentarem asas e garras como querendo significar que o amor voa e fere.
6. Simbolizam também as riquezas deste mundo.
Anne et Robert Blanc, numa obra intitulada Monstres, Sirènes et Centaures Symboles de l’art roman, tentam esclarecer o sentido das representações de sereias na arte românica.
As sereias românicas, quer em esculturas de capitéis ou arquivoltas, nos tímpanos ou nos lintéis, quer em afrescos das paredes, nunca são de filiação clássica, metade mulheres, metade aves, mas sempre de filiação celta, metade mulheres, metade peixes, umas vezes ostentando longas cabeleiras soltas, outras vezes exibindo os seios túrgidos. Quase sempre seguram a cauda com uma das mãos, quando ela apresenta forma simples; às vezes com as duas, quando apresenta forma bífida. A cauda bífida parece ser uma invenção dos escultores românicos. Qual será o seu significado? Para mim é óbvio: estabelece um paralelismo simbólico com a figura humana que, em numerosas esculturas românicas, segura com as mãos os tornozelos, simbolizando desse modo o controle total dos seus passos. Mas talvez possamos ver também nessa bifurcação da cauda uma necesidade de simetria ou simples transposição da forma que a cauda de alguns peixes ostenta.
Poderemos dizer que as sereias românicas, ou celtas, apresentam, ao contrário das greco-romanas, uma face benfazeja. Elas são apresentadas em posição de quem defende os homens dos monstros que os atacam, quando não são elas mesmas atacadas por esses monstros. São, pois, aliadas dos homens e não suas inimigas mortais.
Para tentar interpretar adequadamente o papel desempenhado por estas representações românicas, Anne e Robert Blanc recordam uma lenda celta, recolhida por Jean Markale: certo jovem encontra uma velha que lhe indica o caminho a seguir. Chega a uma ilha. Uma sereia vem ter com ele e propõe-lhe que a acompanhe até ao fundo do mar. Aceita a proposta porque garante não ter medo de nada. Mergulha, portanto, com a sereia nas águas profundas. À medida, porém, que vai descendo, começa a angustiar-se. A água turva-se e, no fundo do mar, saindo de sob a areia, começam a surgir seres misteriosos que sobem para a superfície. Nessa altura, o jovem fica cheio de medo. Apercebendo-se do facto, a sereia fá-lo subir rapidamente à superfície. Diz-lhe que ainda não está preparado para fazer viagens deste género e que, mais tarde, poderá tentar de novo.
Parece verosímil que os escultores românicos tivessem presentes velhas lendas celtas como esta, ao esculpirem as sereias. Anne e Robert Blanc propõem, então, uma interpretação muito positiva: a sereia será o símbolo da capacidade interior que todo o homem tem, em maior ou menor grau, de analisar tudo o que se encontra nas profundezas da sua interioridade. Elas desempenham, portanto, o papel de guias na viagem pelas profundezas do nosso psiquismo, ou então a nossa capacidade de auto-análise, a nossa consciência moral. Este é, evidentemente, um valor muito genérico. Embora com ele relacionado, as realizações escultóricas concretas apresentarão depois valores mais precisos e particulares.
Como síntese final, diremos, pois, que a sereia com cauda de peixe é de origem celta. A ela se refere, pela primeira vez, o Liber Monstrorum, nos finais do séc.VII ou começos do VIII, cujo autor foi de Audelinus ou Aldhem, abade de Malmsbury e depois bispo de Sherbone(639-707). Rica de simbolismo, a sereia românica de origem celta não é a entidade maléfica dos tempo dos gregos e romanos e dos primórdios do cristianismo, sobretudo por influência de Isidoro de Sevilha, mas uma criação dos imaginários românicos altamente sábia, benéfica e espiritual.
Gostaria ainda de chamar a atenção para o facto de não haver entre nós, segundo creio, nenhum estudo sobre a iconografia das sereias na escultura românica. Era urgente fazê-lo. E não precisávamos de ir muito longe para o iniciar. Podíamos começar pelas arquivoltas do pórtico da Sé de Braga.
P.S. Um estudo mais amplificado do tema encontra-se nas Actas do II Congresso Transfronteiriço de Cultura Celta de Ponte da Barca, Município de Ponte da Barca, 2009, pp. 39-47.
Bibliografia
BLANC, Anne et Robert, Monstres, Sirènes et Centaures. Symboles de l’art roman. Paris, Éditions du Rocher, 2006.
DAVY, M. M., Initiation à la Symbolique Romane, Paris, Flammarion, 1997.
FARAL, Edmond, “La Queue de Poisson des Sirènes” in Romania LXXIV(1953), 433-506.
SÉBILLOT, Paul, Le Folklore de France, Paris, Éd. Omnibus, 2002.
Luís da Silva Pereira
Sem comentários:
Enviar um comentário