Ah! No próximo fim de semana (FdS) vou até às trincheiras da minha infância: recordar, ver e olhar e ...emocionar-me com as pessoas, com as árvores, com as pedras e com os lugares. Prometo que não vou ler, ver cinema/televisao, ler jornais, visitar museus ou monumentos. Vou cultuar/cultivar pessoas e lugares. Ponto final. Às vezes preciso de outros cultos, de outras culturas e outros cultivos. Vou cultuar a minha mãe Deolinda, que faz 85 anos, (a mãe Lucinda e a mãe Francelina ficarão para outra altura), os meus irmãos: Arsénio, André, Manuel, Teresa e Hermínio e amigos. Vou olhar o xisto velho, amarelado e cinzento, da minha charneca beirã, exposto nas casas caídas e a cair de velhice e abandono. Vou chorar por dentro e nelas sentir as minhas raízes de menino e moço. Vou olhar o mato e as pedras da minha/nossa infância: recordar nomes, lugares, pessoas, alimentos, modos de fazer, animais, palavras nossas, zangas, bulhas e brincadeiras, terras vizinhas... e o mais que surgir. Este FdS vou deixar todos os cultos de cultura para me virar para o cultivo de pessoas que cruzaram/cruzam as suas vidas com a minha. Ah! Darei um salto ao Meimão para olhar a Malcata na sua verdejante soberba, cumprir a palavra que tenho em atraso; e olharei a barragem que tremeu com os exercícios da força aérea e teima em espelhar as nuvens e o céu mais azul do mundo; e conversarei com o zéhenriques e admirarei a casa que tão bem restaurou e é bela na sua simplicidade e conforto. Espreitarei o Fundão e o Jotaefe porque esse é o meu único vício-virtude, alimentado conscientemente com o corpo e a alma. E outros amigos de braço-e-abraço virão com relatos de preguiça e má-língua. É o prazer do tempo e do culto... * O convidado é jornalista e professor, colunista do “Jornal do Fundão”.
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2 comentários:
O artigo que termino de ler, transportou-me a um tempo tão longínquo quanto a saudade que dele sinto: o meu tempo de criança.
A importância que gestos insignificantes adquiriam perante o nosso olhar puro de criança, um olhar inocente através do qual desvendávamos vendavais tempestuosos, rasgávamos relâmpagos nocturnos que iluminavam as paredes negras do nosso quarto, enchiam de luz a escuridão e nos permitia adivinhar, no olhar de cada irmão, o medo que ali se escondia!
Lembrei tempos, em que descalça, de cabelos soltos ao vento, corria na lama da chuva e saboreava cada instante como se fosse único. A chuva que rasgava meu corpo e me enfeitiçava o olhar provocando-me um sorriso atrevido, como quem desafia a gravidade do tempo! Sim! Quando levantava meu vestido de roda e o colhia nos braços para não o molhar e poder brincar sem que minha mãe se apercebesse de que estive na chuva, sentada nas poças da água que se resguardava na calçada dos caminhos velhos e estreitos, mas tão cheios de poesia...!
Sim, mesmo sem querer, eu ainda devoro o passado e sento-me, trepo ás arvores, desfolho calçadas à portuguesa, pego nas sandálias na mão e permito-me usufruir da natureza tal e qual ela se nos oferece.
Recordo com saudade o espaço enfeitado pelo verde das carvalhas e dos pinheirais e que, infelizmente, hoje deu lugar a betão armado. Sinto angústia por não ter junto a mim aqueles ramos que entrelaçava e onde me sentava, permitindo-me esvoaçar como se fosse andorinha! (esvoaçar tanto a ponto de cair e rachar a cabeça).
Aquele verde musgo que cobria o chão por onde rebolava e, à noite, com uma palheirinha buscava grilos na toca! (Mas não é que eles vinham mesmo quando os chamava!!!) "Grilinho grilota, sai à porta, andam as cabrinhas na horta! Gri...gri...gri...!". Ou então, quando abria desfiladeiros por entre milheirais, searas de trigo, e deitava, e adormecia no conforto das flores campestres, onde joaninhas e borboletas se enamoravam... (“Joaninha voa, voa que teu pai foi a Lisboa buscar um pouquinho de pão para ti e para o João. Voa, voa joaninha!”).
Parecia que o tempo existia só para mim!!! Só eu entendia o colorido das flores, o perfume do espaço, o pólen que as abelhas transportavam de um lado para outro, fazendo estalagem em cada sorriso meu!
Quanta doçura, quanta beleza, quanta saudade de minha meninice! Não tinha nada, mas tinha tudo. Possuía a liberdade em minhas mãos, essa liberdade que canto e afago em cada gesto, em cada ser, em cada olhar!
Era senhora do tempo, princesa do Universo. Tinha a percepção de que podia alcançar o infinito, rasgar horizontes.
À noite, corria atrás dos morcegos, voavam como um papagaio. Gritava meu nome, e escutava o retorno em tom harmonioso, como se harpas e violinos estivessem ali, a tocar só para mim...! Deixava que meu pensar de criança se enlevasse ao cume da vida, e vibrava de emoção. O tempo era só meu! O espaço todo para mim! A brisa, só eu a absorvia...
Hoje nem dá para pensar, parar um pouco, olhar à volta, e sentir o perfume da paisagem, deliciarmo-nos com o deambular das folhas adormecidas que despem árvores corcundas de vida, tão cheias de histórias para contar! O que ontem era importante, hoje deixou de o ser. Passamos a valorizar a correria. Mesmo não sabendo onde ir, sem rumo, sem Norte, desnorteados, continuamos a teimar em não parar.
Vivemos num mundo cultural, mas inculto. Esquecemos quem somos, para nos parecermos com o que se diz ser culto. Desvalorizamos o passado, para adoptar um futuro sem raízes, sem princípios, sem convicção; diria mesmo, sem moral. Adquirimos uma fisionomia que não nos pertence e como tal, passa rápido, e as marcas que deixa são somente de destruição.
Através dos órgãos de comunicação social são-nos impingidas, diariamente, novas formas de vida. Há que adoptar essas formas de vida: dizem que é cultura!...
Para quê? Para quê esta luta desenfreada, esta obsessão em nos querermos parecer com os demais?! Se precisamos tão pouco para viver e ser feliz?! O quanto basta, é poder olhar à volta, respirar a aridez! Em noites orvalhadas, desvendar gotas cristalinas de maresia enfeitadas com a luz do um sorriso. Não importa que seja o teu, o meu, o que interessa, é que seja de alguém que saiba sorrir!
Mas, hoje, infelizmente, até o aconchego do lar deixou de existir, para dar vez a comentários maldosos! O calor familiar anda disperso, e por isso, trememos de frio. O tempo de escutar converteu-se em tempo de agredir! Vivemos num mundo em confusão, onde todos correm sem saber para onde ir. Onde todos discutem e ninguém se faz ouvir. Ocupamos um vácuo oculto, tão fundo, e corremos o risco de nos precipitarmos nesse degredo de ambição, de comodismo, de maldade, onde o consumismo desenfreado manipula a sociedade, e um gesto de cultura inculta, apodera-se da alma das gentes como se fosse a única hipótese de sobrevivência.
É tempo de parar, pensar, e como diz José Amaro, correr em busca do passado, antes que se faça tarde. Ou então, corremos o risco de nem mais saber quem somos.
Eu!... Eu já estou a caminho... Vou em busca das minhas raízes! Em busca da minha paisagem cultural, essa paisagem que mora em mim, mas que precisa que a cante ao mundo, para que o mundo a acolha e lhe dê o devido valor.
Cada um de nós tem, e deve viver, a sua própria cultura. A melhor cultura é a que cresce e vive na alma de um povo!
Amélia Fernandes
Licenciada em Estudos Artísticos e Culturais
Aqui está um jornalista que, coisa rara nos tempos que correm, escreve com estilo, domina a língua materna, é bom observador e sobretudo possui riqueza de vida interior e de sentimentos. Desperta-me suficientemente a curiosidade para o procurar nas páginas do seu jornal.
Porém, sendo de manifesto bom gosto o que escreveu e a forma como o redigiu, fico na expectativa de abordagens mais próximas do assim chamado "jornalismo cultural".
São sempre humanamente reconfortantes estas prosas poéticas que entrelaçam realidades subjectivas, memórias, biografia pessoal, relações humanas, relatos de vida, estados de alma, vivências de viagens... A grande literatura portuguesa está cheia de exemplos.
Mas o que nos falta é mesmo a reflexão e a análise objectiva centradas no estado da cultura nas suas múltiplas questões. E aí o jornalismo, os jornalistas, os comunicadores, os comentaristas da área cultural – onde estão? – têm uma tarefa a desenvolver que é fundamental. Por mim, gostaria que os “cultos de cultura” do José Amaro que agora ficaram de fora, rapidamente passem a ocupar a ponta da sua caneta que, pela amostra, será bem arguta…
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