sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Elogio do singular *, por José A. Alves

Certamente todos os tempos são espantosos para quem os vive, porque nada há de mais espantoso do que viver. A providência da junção das duas células que nos ofereceram a vida é, ab ovo, o primeiro dos espantos. Mil possibilidades diferentes de não sermos nós e eis que somos nós. O leitor que lê, o cronista que escreve. Mil possibilidades e, em cada instante, apenas uma se singulariza. O singular é espantoso. O que quer que seja a sua explicação, o acaso ou o destino, certo é a maravilha que produz nos que ousam sentir de modo inteiro o singular. Curiosamente, no entanto, espanta a repetida necessidade dos seres humanos sublinharem o comum. Numa festa de pinguins ninguém quer ser foca. Parece haver pouca coragem para assumir o diferente, porque também parece mais cómodo assumir o igual. Isto é de tal modo assim, que o normal é o “cómodo do igual”, rotineiramente, procurar subordinar a “coragem do diferente”. Subordina-a com tamanha força, exercendo sobre ela todos os tipos de poder mesquinhos, que, na maior parte das vezes, tem alcançado os seus intentos. O “cómodo do igual” faz adormecer o atrevimento de quem ousa assumir o singular. Subordina, porque tem medo. Chapéus há muitos, mas também velhos do Restelo. Conquanto, a estes tem que se lembrar, entre muitos, o seguinte exemplo: desde 1952, a casa Ferreirinha só produziu 16 edições do vinho Barca Velha, a última em 2000; mas se procurarem no mercado uma garrafa de Barca Velha (1966) o preço deve rondar os 375 euros. A edição de 2000 foi vendida à saída da adega a 75 euros. Talvez, Barca Velha seja o acaso ou o destino de não ser comum, mas é de certeza o desafio, a oportunidade e o valor de ser singular, porque soube arriscar-se. A proposta é não ter medo de descobrir as diferenças, os gostos da voz interior, os limites, as potencialidades, o conteúdo e a forma de cada um. Assumir com coragem a autenticidade da verdade da consciência pessoal. Arriscar a poda que leva à boa casta. Será sempre no assumir do singular que haverá transformação. Só a partir daqui se poderá inverter a ilusão do sonho da realidade, que o mesmo é dizer o cómodo do igual; pelo real da realidade sonhada, que o mesmo é dizer a coragem do diferente. Explico. O sonho da realidade é uma ilusão, porque, geralmente, é o sonho imposto pelo comum dominante e não o sonho próprio. Não provoca nada de novo debaixo das nuvens. É o sonho desencarnado de si mesmo, porque fora da singularidade própria. Será triste o peixe que sonha ser gaivota. Ao invés, a realidade sonhada é real, porque é o sonho que parte do ponto de gravidade que é cada vida humana. É o sonho que parte da encarnação de si mesmo, do saber arriscar-se na sua singularidade. O desafio é mesmo saber dar corpo a esse sonho. Será felicidade o peixe que sonha ser peixe.
Todos querem o melhor. A melhor vida, a melhor sociedade, o melhor governo, o melhor dos mundos… O problema é quando a preocupação com o melhor é assentada na igualdade do comum. Se todos fazem assim?!... Como se dizia atrás, não se esqueçam da vontade do comum subordinar o diferente. A consciência desta vontade e dos seus mecanismos é de extrema importância para realmente se alcançar o melhor. Porque, conforme há mar e mar, também há melhor e melhor. Há vinho e há Barca Velha.
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 * Texto publicado no jornal "Diário do Minho", 09 de Dezembro de 2009, pag. 21
José António Alves / jalves@braga.ucp.pt
Mestre em Filosofia

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